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domingo, 22 de maio de 2011

Aquaman #2



Aquaman #2

Texto e Capa por Gabriel Guimarães
 

A água ainda bate em seu rosto como se fosse a primeira vez. Arthur quase corre para fora dos pesados portões que separam a câmara de transição entre a cúpula que cobre o Império Atlante e as profundezas do oceano que a cercam. Como qualquer criança com seus onze anos, Arthur não pensa na história por trás das estruturas milenares da cidade perdida onde vive, não se preocupa com a deterioração da linhagem real causada pelo seu sangue mestiço, e muito menos com os limites entre o permitido e o proibido.

- Orin! Saia já daí! – exclama, através da comunicação neural entre os atlantes, um dos guardiões da Família Real.

- Mas, Ahri’ahn... – retruca o jovem, enquanto observa a imensidão marinha.

- Sem “mas”. Faça parte da realeza ou não, não posso tirar meus olhos de você. Principalmente nessa região.

- O que tem essa região? – Diz Arthur, apontando para onde os olhos de Ahri’ahn apontavam, uma área obscura, onde a água é tão densa que mal se pode ver formas claramente definidas.

- Ali é o habitat das arraias negras.

- E daí?

- Não conhece a lenda das arraias negras? – o jovem balança a cabeça negativamente, ao que seu guardião continua – Como sombras a vagar pelo oceano afora, diz a lenda que quando alguém encontra uma arraia negra, é sinal de que algo muito ruim vai acontecer. Como instrumentos do caos, todo aquele que olha no fundo dos olhos de uma dessas criaturas vê o momento de sua morte.

- E como você sabe disso?

- Dizem que foi isso que aconteceu com o primeiro rei da Atlântida depois que ela submergiu, Poseidon. Enquanto ele explorava a região para saber como aprimorar a cúpula, um dia se deparou com um desses seres das sombras. Dizem que ele viu a água ficar vermelha cor de sangue e as ruínas mais antigas da cidade clamarem seu nome.

- E o que aconteceu com ele?

- Depois que ele terminou tudo que planejou para assegurar a sobrevivência e a qualidade de vida no Império, ele disse que não poderia mais negar o chamado das ruínas, e que deveria ter seu sono eterno lá.

- Mas por quê lá? E por quê todas aquelas arraias negras ficam apenas naquela região?

- Ninguém sabe ao certo. Uns afirmam que ele foi enfrentar um ser formado nas entranhas da Terra que ameaçava qualquer um que cruzasse seu caminho. Outros dizem que ele enlouqueceu e acabou morrendo pela própria espada. Mas ninguém sabe o que aconteceu de fato. Quanto às arraias negras, dizem que nas ruínas ainda se encontra a coroa de Poseidon e que a função delas é protegê-la de qualquer intruso ou invasor.

Arthur, em silêncio, observa atentamente ao longe as sombras se mexendo na água, como vultos sem forma física propriamente dita.

- Venha agora, pequeno mestre. A hora do passeio terminou.


***


- Majestade? Está me ouvindo, majestade?

O salão do Palácio Real parece imóvel, semelhante à figura de seu príncipe. As estruturas de cristal refletem a quantidade exorbitante de membros das mais altas castas do império Atlante, enquanto estes aguardam pela atenção de Arthur, que, sentado à beira de tudo, observa a parte externa da cúpula ao longe, através de uma das janelas do cômodo.

O conselheiro ancião se esforça para estalar seus dedos em frente a Arthur mais uma vez, na esperança de chamar sua atenção.

- Oh, desculpe-me, conselheiro Wexel. Estava perdido em pensamentos.

- Nota-se. Se bem que para o nível de profundidade dentro de sua mente, o senhor estava mais para afogado do que perdido.

- O que o senhor gostaria de falar comigo?

- Aconteceram novos atos de vandalismo, príncipe Orin. A banca militar deseja falar com o senhor o quanto antes para saber que atitude deve tomar.

- Pois então, vamos a ela.



***



- As demonstrações de insatisfação estão cada vez mais freqüentes, general. Duas semanas atrás depredaram a sede do centro administrativo da ala norte do Império. Há quatro dias atrás, racharam as pilastras que sustentam a rede de transporte na zona de maior concentração demográfica. Hoje, picham com tinta extraída do polvo a estrutura clássica das paredes externas da Biblioteca Real.

- Entendo, soldado. É uma situação muito delicada essa que estamos vivendo. A transição real vai exigir o melhor desempenho de cada um de nós para que mantenhamos a integridade do Império Atlante.

- Com certeza. Mas, general, o quê afinal de contas significa essa palavra que eles escreveram? “Morte ao Aquaman”. O que é um “Aquaman”?

- É um termo depreciativo quanto à união de raças que forma o meu sangue. Para esses párias, eu não sou nem um atlante, digno de viver no fundo do mar com a nação, nem um ser da superfície, uma vez que eu não sou procurado pelo povo de lá. – interrompe Arthur, em um tom de pesar, ao entrar na central do setor militar atlante.

- Majestade, eu... – diz de forma embaraçada o soldado, tropeçando em si mesmo.

- Não te preocupes. O povo está apenas assustado. Minha mãe é a rainha mais aclamada em séculos pelo povo atlante, porém, eu represento o perigo da incerteza, do estranho. Tudo que vêem quando olham para mim é o medo.


***

 
Um silêncio se instaura na sala. Em meio a expressões de constrangimento e respeito, é possível ver que há quem duvida do poder de Arthur.

- Quem esse humano pensa que é? – sussurra um dos soldados mais afastados do rei.

- Calado, Charybdis. Vai nos fazer ser rebaixados de posto! – responde seu colega, entre dentes, para que não consiga ser ouvido por Arthur.


***


- Majestade Orin, recomendo que façamos uma busca reforçada nas regiões próximas às estruturas históricas e que retaliemos os opositores.

- Não, general. Se nós, que devemos proteger essa nação, derramarmos uma gota de sangue no meio do oceano, não tardará para que todos os mares se tornem rubros. Precisamos dar o exemplo.

De repente, as portas da central se escancaram, gerando um estrondoso som ao bater nas paredes. Um mensageiro corre velozmente, indo em direção à Arthur.

- Alto! – diz o general, se pondo entre o invasor e o príncipe. Sua mão empunha uma espada do exército real e aponta para o pescoço do frágil, porém, delgado estranho.

- E-eu te-tenho uma mensagem para o príncipe Orin. S-sua mãe, a rainha Atlanna, chama por você. E-ela diz não ter muito tempo.


***


-Mãe! Vim o mais rápido que pude! – irrompe Arthur, aproximando-se do leito onde Atlanna repousa.

- Arthur, meu querido filho... – Atlanna fala num tom quase melódico, virando-se em direção a Arthur e se esforçando para abrir seus olhos para olhá-lo.

No mesmo quarto em que Arthur foi concebido, Atlanna repousa em sua cama, sob uma miscelânea de cores de tecidos, feitos pelas artesãs da nação como forma de homenagear sua rainha. Os poucos atlantes que se encontravam no cômodo observaram a entrada de Arthur, porém, não demonstraram reação alguma, permanecendo focados exclusivamente na condição vital bastante fraca de quem os liderou por décadas em prol do bem do Império Atlante.

- Saiam, por favor, pois desejo falar com minha mãe a sós.

Após um momento de silêncio enquanto o quarto se esvazia, até restarem apenas Atlanna e Arthur, o príncipe continua.

- Me chame de Orin, mãe.

- Arthur, não renegue à herança de seu pai... Por mais que seja difícil lidar com o seu povo por causa dela, é ela que trará muitas bênçãos para o Império Atlante... Seu pai sempre acreditou nisso... E eu também.

- Mãe, é por causa dessa herança que não confiam na minha capacidade de governá-los. Pensam que sou menos do que os demais atlantes.

- Quem pensa assim, Arthur, não conseguirá usufruir de todas as maravilhas que você ainda trará para nossa nação. O elo que eu tive com seu pai foi algo muito além do que senti em toda minha vida nas profundezas do mar e eu vejo que você herdou isso quando se relaciona com as formas de vida marinha. Desde que você era muito pequeno, me lembro de suas amizades com os golfinhos que nadavam por sobre a cidade. Sua ligação com eles era muito maior do que qualquer outra demonstração de interação que já vi você ter com qualquer um no Império.

A rainha esboça um sorriso, ainda que demonstre lutar contra um desconforto que lhe fere bastante.

- Arthur, você está destinado a grandes vitórias, mas só conseguirá alcançá-las caso aceite tudo aquilo que você é. Ambas as suas origens são o que fazem de você o rei que os atlantes tanto esperaram, desde a morte de Poseidon.

- Sim, mãe.

- Muito bem, meu filho. Chegou o momento de eu me juntar à linhagem de nossa família. Não mais tenho forças para lutar contra o inevitável, porém, queria mostrar-lhe que sua luta não é em vão... Agora, a nação atlante fica em suas mãos, Arthur. Lembre-se do que diz a lenda sobre o rei dos mares. Você... ainda será... o rei dos mares... contanto que acredite... naquilo que representa e... em si mesmo...

E, num último fechar de olhos, a rainha Atlanna dorme para não mais acordar. Sua mão perde a força e recai sobre os lençóis que lhe cobria, porém a expressão de alegria e orgulho que demonstrara enquanto falava com seu filho permanece intacta, num gesto de confiança e de amor puro e simples.


***


O agora rei sai do cômodo, após um momento de homenagem à memória de sua mãe, e, então, ergue sua mão para que os súditos atlantes que aguardavam do lado de fora, no corredor, pudessem prestar atenção no que iria dizer:

- Cidadãos atlantes, ouçam-me bem. Minha mãe já não está mais entre nós. Hoje, ela me passou seu legado e pôs em minhas mãos o comando do Império Atlante. Apesar do que muitos possam pensar a meu respeito, tudo que almejo é o bem de nossa noção e de nossa cultura. Da mesma forma como minha mãe dedicou seus dias à preservação de toda forma de vida, também eu o farei. E desejo, sinceramente, que vocês acreditem que estarei sempre lutando pelo bem de vocês acima de qualquer outro ideal.

Em meio a expressões de desconfiança e de temor, os atlantes observam atônitos e desconcertados Arthur, que, apesar das boas intenções, compreende que tudo que seus concidadãos vêem nele é a figura opressiva que no passado causou o massacre de muitos daquela nação.


***


- Achei que este dia nunca fosse terminar.

- Sim, conselheiro Wexel. Foram momentos conturbados que se sucederam à morte de minha mãe.

- Majestade, o senhor sabe o quanto a memória de sua mãe estará presente no coração de todos os atlantes e que tudo que ela fez por nós jamais morrerá de fato enquanto nos recordarmos dela.

- Obrigado, conselheiro.

- Porém, majestade, venho lhe falar de eventos que carecem da atenção do rei desta nação, antes que de um filho em luto.

Arthur mexe de leve sua face, enquanto observa o Império Atlante através da panorâmica visão da Sala de Estudo da Realeza. A noite caíra sobre os prédios, tornando a visibilidade natural densa, sendo apenas facilitada pelo sistema de iluminação fotófora, que recobre todas as estruturas dos prédios. O projeto para o aumento da iluminação da cidade fora um dos maiores investimentos feito por Atlanna, pois sua paixão pelas estrelas a fazia crer que para que o Império Atlante voltasse a mostrar todo o seu potencial, ele deveria poder brilhar tanto quanto seus sonhos. E baseados na aceleração da atividade mitocondrial de photocytes, substância responsável pela luminescência característica de certos peixes no fundo do mar, os cientistas atlantes desenvolveram uma vasta pesquisa para implementar esse processo de forma artificial na própria arquitetura da cidade. As lembranças de sua mãe mostrando os prédios brilhando pela primeira vez quando Arthur era uma criança inundam o coração do rei com uma grande melancolia, ainda que contida.

- Tudo bem, podes prosseguir.

- O povo ainda não aceitou bem sua chegada ao trono. Todo o departamento militar está nas ruas, contendo revoltas e demonstrações públicas de anarquia. É preciso que o senhor tome alguma providência!

- Que esperas que eu faça neste momento, conselheiro? O povo teme pela continuidade de seus valores e culturas, eles não vêem que o interesse geral é o meu interesse também.

- Majestade, às vezes, para se conseguir respeito, é preciso criar um exemplo prático do que acontece àqueles que lhe faltam com a devida consideração...

- Conselheiro, como disse hoje mais cedo ao general, não tenho desejo em sujar minhas mãos com sangue. Principalmente, sangue atlante.

- Sim, majestade. Mas, no entanto, lhe faço uma pergunta: provocando esses atos de selvageria desenfreada em resposta à sua ascensão, quem garante que o próprio povo atlante não vá causar um derramamento de sangue muito maior do que haveria se nós realizássemos uma represália imediata?

- Eu confio no meu povo.

- Sim, majestade. Disso, eu determinantemente não tenho dúvidas. Porém, me pergunto exatamente o quanto eles confiam no senhor...


***


- Não acho que deveríamos ter saído da cúpula, Chubb...

- Qual é, tá com medinho, Me’niz?

- Medo e bom senso são coisas bastante diferentes...

Enquanto a situação interna do Império Atlante chega a um ponto de caos como não se via há tempos, muitos são sabem o limite de onde parar na luta pelos seus desejos pessoais, em especial aqueles baseados em questões relativas a um mero exemplo de auto afirmação. Os jovens, que são os mais comumente afetados por esse sentimento, acabam sendo a válvula de escape para as questões mal resolvidas nas comunidades onde vivem, e, assim, são os que mais sofrem com as ameaças que surgem em seu entorno.

- Não vai me dizer que você acredita naquela baboseira sobre o guardião das ruínas... Aquilo não passa de história de criança que os pais contam pros filhos obedecerem suas ordens de não vagar pelo mar fora da cúpula.

- O que é exatamente o que nós estamos fazendo.

- Ah, larga mão de ser água viva e me ajuda a comprimir aqui a tinta nessa parede...

Enquanto os jovens começam a marcar a estrutura outrora presente nos tempos áureos do Império Atlante, eles não imaginam aquilo que os cerca.

- Vamos lá, falta pouco para completar essa letra... – diz Chubb, mordendo os lábios, enquanto concentra sua força para pressionar a tinta para fora do compartimento onde a carregou.

- Você viu isso?

- Isso o quê?

- Acho que eu vi duas sombras na água naquela direção...

- Você quer dizer arraias negras?

- Não diga isso! Quando você as chama pelo nome, isso as atrai, junto com todo o mal que elas carregam consigo.

- Meu Deus, Me’niz, você é muito medroso! Guardiões, sombras n’água, tudo isso não passa de um monte de...

Eis que, num movimento súbito, a frase do jovem é interrompida, quando, saindo de uma das sombras, algo lhe arranca o dispositivo com tinta das mãos.

- Chubb, corre!!! – grita desesperadamente o outro jovem, porém, tudo que vê quando olha na direção onde seu amigo estava é um rastro de pequenas manchas avermelhadas.

Olhando em todas as direções, Me’niz reencontra o brilho da cidade dentro da cúpula e parte em sua direção, através de manobras rápidas porém desorganizadas. Por alguns segundos, ele pensa que está conseguindo escapar, porém, logo depois, sente a sensação de uma lâmina ter atravessado sua perna direita.

O grito do jovem é abafado pela quantidade de bolhas que saem de sua boca, mas o rastro de sangue que deixa para trás apenas parece atiçar ainda mais quem ou o que quer que tenha pego seu amigo e lhe ferido a perna. Juntando suas energias, ele pressiona seus músculos braçais ao máximo para empurrar a água mais rápido e conseguir se aproximar da cidade. Ele pensa que foi o grande erro de sua vida ter aceitado ir com Chubb para criar uma forma de protestar contra o novo rei do Império, e que agora, tudo que há para mostrar do que os dois fizeram é a palavra “Aquaman” escrita na parede de entrada das ruínas.

Em poucos momentos, Me’niz sente que sua força cessará e seu perseguidor o levará para a escuridão do seu habitat e lhe tomará a vida. Entretanto, de repente, o som de água sendo movimentada pára, e o jovem percebe que está mais próximo da cidade do que imaginava.

A partir desse momento, sua vida não será mais a mesma. Agora, ele sabe que o discernimento muitas vezes é o diferencial entre a vida e a morte. E, além disso, que o perigo espreita o Império Atlante, e ele tem sede de sangue...



CONTINUA.

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